30 abril 2008

às vezes sim, às vezes não - II

s vezes sim, às vezes não - o pior é quando é sempre - II

Ao fim de semana, Lopes ajudava a mulher no café que exploravam havia poucos anos. Não era pelo dinheiro, que não lhes fazia falta, mas ambos eram trabalhadores compulsivos. Gostavam de manter o hábito do trabalho e cumpriam os horários escrupulosamente, só para poderem gozar o prazer das férias. Ter férias era toda a recompensa pelo mínimo esforço que faziam em acordar cedo, andar quilómetros, sujeitar as canelas aos caninos afiados dos canídeos que o detes...adoravam. Para os amigos, aquilo era só uma cisma mas as férias daqueles dois faziam inveja a muitos menos a mim, que nunca gostei da azáfama de Benidorm.
Deolinda sofrera um ligeiro avc que lhe tinha deixado algumas mazelas, impedindo-a de desempenhar tarefa mais árdua de que não fosse o de servir petiscos ao balcão. Caminhava com desenvoltura apesar do largo quadril e mantinha no lugar o conteúdo da sua cabecinha, que Lopes tinha na conta de muito esperta. Tinha, no entanto, um senão. Não o não do Lopes, mas um constante sim. A única lesão visível do tal acidente era um constante e afirmativo aceno de cabeça, como quem responde "sim" a tudo o que se lhe pergunta.
Para alguns clientes, era um caso complicado (só comparável à duplicidade do olhar estrábico). Perguntava-se-lhe: “- tem caracóis?” - a boca respondia não mas a cabeça acenava que sim. As pessoas ficavam confusas, um misto de nervos, dúvida e uma certa dose piedade. Não voltavam a perguntar, refugiavam o olhar no menu. Deolinda ficava ali, parada, à espera do novo pedido,
- Caracóis não há, mas temos cadelinhas...
- Não há? Mas pareceu que a senhora disse que sim...
- Pois, mas não há... Isto é um jeito que eu dei ao pescoço...
Perante o impasse, e só se era sábado, lá vinha o Lopes em seu socorro, encomendar o pedido. Deolinda estristecia por não conseguir dizer "não" de modo credível. Começava a estar farta de dizer sim a tudo mesmo quando não queria. Via-se cada vez mais dependente do Lopes mas este sentia-se feliz: era útil todos os dias. Foi por isso que um dia, pelo sim pelo não, disse não aos envelopes e sim aos caracóis.

FIM, Sim

1 comentário:

zorbas disse...

Aposto que o filho dos dois tem, com certeza, o hábito de introduzir nas suas observações um enigmático "talvez"!...