13 fevereiro 2009

raída pelo coração - IV
(a parte em que a vida proporciona experiências amargas)

Após a abstinência exigida pelo conveniente período de convalescença, Sissi recuperava. De volta à vida e à revolta que lhe faziam notar os narizes torcidos sempre que se ouvia o nome pequenino do pequeno Pêpê.
Começou por sentir tonturas quando se levantava e a mãe tentava mantê-la na caminha - parecia que, de algum modo, fazendo isso podia dar à filha algum do carinho de que ela tanta vez se queixara não ter. Mas discretamente, debaixo dos lençóis, Sissi tentava comunicar com ele, repetindo-lhe o seu amor, tentanto justificar a atitude tresloucada de havia dias.
Os primeiros momentos de lucidez foram preenchidos pelas atenções das amigas que se revezavam nas visitas e apoio na sua decisão de continuar a estranha inclinação. Diziam-lhe que fosse em frente, que o amor acabaria por vencer, mas Sissi perguntava-se se G e a mãe teriam alguma razão: rir-se-iam os outros ao vê-los juntos? Seria assim tão mau? Teriam pena dela por estar desgraçadamente apaixonada? Teriam compaixão? Veriam nela uma azarada na vida?
Depressa percebeu que apenas lhe restava guardar sigilo para manter aquele namoro e cada vez aumentava a certeza de que não abdicaria dele por nada do mundo. Compreendia agora que aquilo que fizera com risco da própria vida, em nada tinha alterado a opinião dos outros e também, mas principalmente, nada tinha acrescentado à altura do rapaz.

A vida corria e Sissi fazia anos, tal como as outras pessoas. Tal como às outras pessoas, também as suas amigas lhe organizaram um jantar surpresa; como em todas as histórias, a surpresa vem no fim e no fim de todos se sentarem à mesa, ele chegou, carregando um enorme ramo de tantas rosas quantas a idade dela. Sentou-se à frente dela, um pouco constrangido por ser a primeira vez que era apresentado a alguns dos convivas. Estava nervoso, ela estava nervosa, ria-se continuamente enquanto engolia o jantar. Mas ele tinha outra surpresa que trazia nas mãos, em cima de um prato e sob um guardanapo branco com xadrez azul: fizera-lhe um bolo de chocolate, o predilecto dela, carregadinho de velas. Esqueceu-se, no entanto, de um pormenor: o açúcar... À primeira garfada, cruzaram-se olhares, que se refugiaram nos pratos; ninguém teve coragem de expressar o comentário mais discreto. Surgiram os mais diversos pretextos para abandonar a mesa e o bolo. Pediu-se água para ajudar...
Sissi, firme na sua cruzada, foi a única que, insensível ao sentir das suas papilas gustativas, continuava alegremente devastando o bolo de chocolate mais amargo e seco de que havia memória.

Sem comentários: