20 abril 2010

u, animal de quatro patas - I

assim transformada por obra de um casal de condutores impreparados, que, por me terem transformado a vida me pediram desculpa a tremer, com um vaso de flores e a citação de um salmo cujo número não fixei.
Atira-me para a cama do hospital e dois meses de recuperação e eu não sei se lhes perdoei, não sei se lhes perdoo nem sei o que sinto acerca disso; ninguém faz tamanho acto sem ser por uma desmedida dose de inconsciência e irresponsabilidade. Creio que o que essas pessoas sentem não depende do meu perdão. Creio que o peso nas suas consciências fará isso por mim. Devo-lhes as dores que nunca tinha experimentado; conviver com uma realidade que desconhecia. Fizeram-me mal, muito mal e, no entanto, não lhes tenho raiva. Não sei o que lhe tenho. No entanto, andam lá fora, talvez levando as suas vidas normalmente. Deixá-los.

A vida suspensa por meses, por culpa de dois ou três segundos e dúvidas quanto à minha perfeita recuperação. Um ferro para tirar em nova operação. Um regresso que hospital, que ainda me causa pânico.
Estarão outros doentes a passar o que passei? Quinze noites sem dormir quase todas porque não me deram ouvidos quando me queixei duma alergia que me pôs a pele em ferida. Coçar-me noites a fio, a arder em calor e sem solução à vista; limitada a uma posição na qual nunca antes adormecera, num colchão forrado de materiais sintéticos e protectores, devidamente previsto, testado e inócuo, pensara eu...

Mas o meu sofrimento não era só meu. Ultrapassava o meu quarto; o meu pensamento dirigia-se para todos os seres que sofrem com experimentações, em laboratórios de onde não têm escape. Tudo o que usaram em mim terá sido testado em milhares de outros seres que sofreram mais do que eu, não tendo servido de grande remédio tamanha dor. Sofri ainda mais com este pensamento que me angustiou dias a fio.
Quando, após três infrutíferas tentativas, consegui levantar-me e circular pelos corredores numa cadeira de rodas, fi-lo de olhar no chão; não conseguia encarar as outras camas, os outros quartos, onde adivinhava situação igual à minha, mais dor.
Eu passei mal, mas um belo dia tive alta. Não fugi pelo meu pé, mas posso recuperar.
Outros não têm esta sorte. Acredito que este acidente tenha mudado a minha vida e a minha forma de estar. Terei medo de andar a pé? Esquecerei tudo isto facilmente? Tenho medo...

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