18 maio 2011

orta a porta


Faz para aí dois anos que não via Leonor. Visitei-a hoje na mesma casa que sempre lhe conheci, ainda com o seu caniche branco, hoje acinzentado de sujo, o Snoopy, e os seus lábios pintados de vermelho ainda muito vivo. Já passou dos setenta mas parece ter menos dez; garante-me que é de se ter poupado aos filhos e a homem estabelecido lá em casa. Sou levada a acreditar quando me apresenta as provas.
Abriu a gelosia, como a própria lhe chama e mostrou-me um franco sorriso; ficou contente por me ver, espetou-me dois valentes beijos e um abraço apertado que transbordava a sinceridade. Mostrou-me com orgulho a transformação que fizera na casa após a senhoria lhe pagar as obras: tinha deitado fora tudo o que não prestava e de que não fazia uso; lavara um por um cada objecto exposto nos aparadores brilhantes.
Questionei-me acerca do uso e essência desses objectos - olhando à minha volta parecia que tinha salvado as coisas erradas...
Sentámo-nos na cozinha recém transformada e recheada do mais refinado kitsch. Em cima do fogão, da banca, da mesa, do frigorífico, paninhos azuis e amarelos encimados por um objecto de loiça; um porco, um galo, um cozinheiro, um farfalhudo ramo de flores vermelhas... No esquentador meia dúzia de ímanes coloridos em forma de fruto. Potes de diversos géneros, cores e tamanhos; relógios de parede e quadros forravam as paredes sem qualquer critério. Na sala, o menino da lágrima ocupava a parede de maior destaque.

Na visita que durou uma hora terei dito umas dez palavras e um ou outro grunhido. A senhora contou com todos os pormenores a sua péssima relação com a vizinha de cima, cujas falas imitava numa voz esganiçada, não poupando nas palavras e nos palavrões que a outra diz à menor contradição.
Como se se tivesse lembrado de uma coisa importante, contou-me uma grande novidade: a Promotora passou a ter bailes aos domingos à tarde e não perco um!
Tinha-me esquecido deste mundo; no meu dia a dia não me recordo que existem pessoas com vidas tão simples, cujo objectivo é ter uma casa caiada, arrumada e limpinha, o cão asseado, tosquiado e feliz com as suas seis camas espalhadas pelos compartimentos; uma boa relação com os vizinhos que ainda chegam a casa podres de bêbados; que comunicam uns com outros berrando às janelas; que ficam com a chave as suas casas para prevenir problemas; que aguardam a chegada do autocarro recém inventado pela junta de freguesia para os levar ao posto. De regresso compram o pão e aguardam ansiosamente pelo dia em que sai o totoloto...

4 comentários:

Anónimo disse...

lindo anita!
é tb por este tipo d coisas q gosto d ti!

josépacheco disse...

maravilhoso post, cheio de ironia e ternura. adoro a ideia de que, deitando fora tudo aquilo de que não precisava, talvez tivesse ficado com as coisas erradas. é um primor de espírito de observação. entras num mundo que me parece italiano (mas é bem português) e entrega-no-lo de bandeja...

josépacheco

Ana C Marques disse...

É por isto que eu gosto tanto de vocês (e descubro que faltam sinais no teclado)

Anónimo disse...

Minha Senhora, O país inteiro, do solar minhoto à quinta da marinha, da lezíria ribatejana ao montado alentejano, espera o dia do totoloto. E os mais ambiciosos e updated dele, o do euromilhões. Não saber isso é não saber nada sobre Portugal.