13 junho 2011

noiva e o morto


Marina está noiva e vai casar em breve. Tem poucas recordações do pai mas vive na sombra duma figura severa, intransigente, ríspida, mas honesta, virtuosa, exemplo de rectidão e humildade, pai extremoso; deseja perpetuar a sombra dessa figura enigmática, não admitindo sequer um beliscão no perfil do perfeito pai de família.
A noiva não sabe o quão longe está da verdade e nesse credo colabora a mãe, que , conhecendo de ginjeira o figurão, recusa a verdade, tornando-a quase verdade tanto aos olhos de Marina quanto de alguns amigos recém chegados ao seu meio. Nunca quis aceitar a verdadeira essência do marido e pai das adoradas filhas.
Serafim foi-se subitamente enquanto saltitava entre celas na Judiciária, em Lisboa, acometido por um enfarte, quando Marina era pequena. Foi o fim de uma vida de embustes e disfarces que terminava com um começar dormente pelo braço acima. Nada havia a fazer, diziam os médicos, e o corpo viajou de ambulância como se estivesse apenas ferido para evitar custos avultados e os processos morosos da trasladação; não foi isso que fez nascer o boato de que Serafim não estava morto, que aquele corpo não era o dele e que ele tinha fugido são e salvo para o Brasil. Foi porque o conjunto de acções que o caracterizavam e enfim, toda a sua vida, levavam a crer que era provável e natural que Serafim assim procedesse. A única vez que foi verdadeiro na vida, terá sido na morte.
Passaram mitos anos sobre esta morte, Marina está para casar e ainda há quem jure que o viu no Brasil. Ela desconhece que o seu pai era capaz de vender por ouro o mais pobre dos plásticos; que passava a fronteira embrulhado em notas para salvar fortunas; que vivia de noite para fechar negócios; que vigiava assaltos a altares; que escolhia os amigos tendo em vista o seu proveito.
Não vale a pena avisar a Marina. Pelo menos em relação ao pai, ela está feliz.

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