ma questão de fé
Era uma vez uma cadelinha que vivia debaixo dum carro que fora, tal como ela, abandonado numa zona fina dos subúrbios da cidade. Sem nome e apenas com um tecto carregadinho de óleo, tinha filhos em catadupa, que desapareciam sempre a breve trecho. Tinha medo de tudo o que mexia e que emitia som; enroscava-se, escondia-se, desatava a correr se pudesse. Procurava companhia, pedia uma festinha pelo lombo, que fosse, e tornou-se presença indesejável - passou a ser corrida à vassourada.
Um dia, alguém lhe quis pôr fim à dor e à sucessiva procriação, levando-a para lugar seguro - a começar, por uma clínica veterinária com internamento e tudo. Chamaram-lhe Meia-Leca por ser pequena e franzina; mas a enfermeira brasileira da clínica não conseguia dizer-lhe o nome (na sua boca passou a ser meleca - a cadelinha deve ter piorado ao ouvi-lo).
Como não era bafejada pela sorte, num golpe duro de azar, agravou-se o seu estado de saúde. Complicações umas atrás das outras, sofrimento, dor, recuperação difícil e dolorosa, exames, punções, análises.
Meia-Leca fazia-se forte, disfarçava a dor num olhar meigo que inspirava piedade e conseguiu recuperar após três intervenções cirúrgicas que lhe mantiveram, no entanto, uma espécie de novelo no lugar do intestino delgado. Recusava a comida, enfraquecia, tinha a vida a prazo e precisava recuperar num lugar sossegado.
É aqui que eu entro - dei-lhe abrigo e chamei-a Lolita. Tapou os ossos à flor do pêlo, mas não se dissiparam os seus medos; um barulho inusitado, um gesto brusco e ei-la a desatar a correr, ignorando as próprias dificuldades. Um dia fugiu, escondeu-se por uma tarde, reaparecendo ao fim da tarde, quando já se pensava que se tinha posto bem longe dali.
A sua saúde piorou – o intestino não funcionava, portanto, deixou de comer. Foi internada de novo durante três semanas. Um dia, fui visitá-la e trouxe-a para passar um fim-de-semana que dura até hoje. Nova recuperação, receios aumentados de novos barulhos. Mas agora recomeça a comer e a encontrar silenciosamente soluções para o seu próprio problema. Muitas vezes fugia para debaixo da cama, onde se aninhava para esconder o medo ou talvez a dor.
Até ao dia em que, já fortalecida e num passeio bem longe de casa, se assustou de tal modo que correu, correu, correu até talvez ficar sem força. Foi um momento de desatenção, e arrastou a trela até desaparecer.
Passaram dois dias - foi dada como perdida, como morta, como escondida do frio que apertava e da chuva que caía, como tendo sido adoptada por uma alma caridosa. Espalhou-se a palavra pela cidade – anúncios no jornal, na rádio, nos postes, nos cafés, nos eco-pontos; abordaram-se pessoas na rua, os bombeiros a colaborar nas suas rondas de bicicleta; alerta (que se verificou falso) por parte da PSP, que avisara todos os carros-patrulha. Correu-se aos acampamentos ciganos, referenciados como frequentes ladrões de cães. Nada.
A cidade passada a pente fino, a parte possível de passar, a parte previsível para encontrá-la. Noites sem dormir, um cansaço extremo, quilómetros a pé para recuperar a cadelinha que já era a cadelinha da rádio, que já era quase vedeta mas que ninguém via em canto nenhum.
Não se podia parar, não se podia desistir, ainda só passara uma semana, ainda havia esperança de voltar a tê-la, não se podia deixá-la ter uma morte que era certa mas que queríamos em paz. Com o fim-de-semana à porta e sem notícias do seu paradeiro, havia que partir para novas buscas, a pé, de carro, não desistir dela. À sétima noite, um telefonema alertou para a sua localização: sete quilómetros a este do centro da cidade. Algumas pessoas juntam-se nas buscas, passam palavra, a povoação fica alerta.
Noite mal dormida porque era preciso ver o sol nascer na rua, debaixo de gorros, cachecóis e luvas. Espalhámo-nos pelos caminhos e às oito e meia detectamo-la a atravessar a rua arrastando a trela vermelha enlameada. Corremos silenciosas. Esgueirara-se pelas grades de um portão. Havia que esperar... e têmo-la de volta!
Lágrimas e sorrisos. Ela tremia e ganiu durante uma hora seguida, até que sentiu as patinhas aquecidas por um banhinho quente e se viu em lugar seguro. Era de novo pêlo e osso, mas estava connosco.
Corremos a avisar E., que era quem nos tinha alertado do seu paradeiro e que estava a rezar por ela desde que se levantara (ela tinha perdido um cão quando tinha doze anos e nunca o esqueceu). Verteu profundas lágrimas e beijou-a enquanto nos contava que Lolita lhe tinha sido posta no seu caminho para que ela a achasse. Sucederam-se telefonemas de pessoas que se interessaram pela causa e que disponibilizaram ajuda. Era o dia em que a minha mãe fazia anos e podíamos almoçar em paz.
Era uma vez uma cadelinha que vivia debaixo dum carro que fora, tal como ela, abandonado numa zona fina dos subúrbios da cidade. Sem nome e apenas com um tecto carregadinho de óleo, tinha filhos em catadupa, que desapareciam sempre a breve trecho. Tinha medo de tudo o que mexia e que emitia som; enroscava-se, escondia-se, desatava a correr se pudesse. Procurava companhia, pedia uma festinha pelo lombo, que fosse, e tornou-se presença indesejável - passou a ser corrida à vassourada.
Um dia, alguém lhe quis pôr fim à dor e à sucessiva procriação, levando-a para lugar seguro - a começar, por uma clínica veterinária com internamento e tudo. Chamaram-lhe Meia-Leca por ser pequena e franzina; mas a enfermeira brasileira da clínica não conseguia dizer-lhe o nome (na sua boca passou a ser meleca - a cadelinha deve ter piorado ao ouvi-lo).
Como não era bafejada pela sorte, num golpe duro de azar, agravou-se o seu estado de saúde. Complicações umas atrás das outras, sofrimento, dor, recuperação difícil e dolorosa, exames, punções, análises.
Meia-Leca fazia-se forte, disfarçava a dor num olhar meigo que inspirava piedade e conseguiu recuperar após três intervenções cirúrgicas que lhe mantiveram, no entanto, uma espécie de novelo no lugar do intestino delgado. Recusava a comida, enfraquecia, tinha a vida a prazo e precisava recuperar num lugar sossegado.
É aqui que eu entro - dei-lhe abrigo e chamei-a Lolita. Tapou os ossos à flor do pêlo, mas não se dissiparam os seus medos; um barulho inusitado, um gesto brusco e ei-la a desatar a correr, ignorando as próprias dificuldades. Um dia fugiu, escondeu-se por uma tarde, reaparecendo ao fim da tarde, quando já se pensava que se tinha posto bem longe dali.
A sua saúde piorou – o intestino não funcionava, portanto, deixou de comer. Foi internada de novo durante três semanas. Um dia, fui visitá-la e trouxe-a para passar um fim-de-semana que dura até hoje. Nova recuperação, receios aumentados de novos barulhos. Mas agora recomeça a comer e a encontrar silenciosamente soluções para o seu próprio problema. Muitas vezes fugia para debaixo da cama, onde se aninhava para esconder o medo ou talvez a dor.
Até ao dia em que, já fortalecida e num passeio bem longe de casa, se assustou de tal modo que correu, correu, correu até talvez ficar sem força. Foi um momento de desatenção, e arrastou a trela até desaparecer.
Passaram dois dias - foi dada como perdida, como morta, como escondida do frio que apertava e da chuva que caía, como tendo sido adoptada por uma alma caridosa. Espalhou-se a palavra pela cidade – anúncios no jornal, na rádio, nos postes, nos cafés, nos eco-pontos; abordaram-se pessoas na rua, os bombeiros a colaborar nas suas rondas de bicicleta; alerta (que se verificou falso) por parte da PSP, que avisara todos os carros-patrulha. Correu-se aos acampamentos ciganos, referenciados como frequentes ladrões de cães. Nada.
A cidade passada a pente fino, a parte possível de passar, a parte previsível para encontrá-la. Noites sem dormir, um cansaço extremo, quilómetros a pé para recuperar a cadelinha que já era a cadelinha da rádio, que já era quase vedeta mas que ninguém via em canto nenhum.
Não se podia parar, não se podia desistir, ainda só passara uma semana, ainda havia esperança de voltar a tê-la, não se podia deixá-la ter uma morte que era certa mas que queríamos em paz. Com o fim-de-semana à porta e sem notícias do seu paradeiro, havia que partir para novas buscas, a pé, de carro, não desistir dela. À sétima noite, um telefonema alertou para a sua localização: sete quilómetros a este do centro da cidade. Algumas pessoas juntam-se nas buscas, passam palavra, a povoação fica alerta.
Noite mal dormida porque era preciso ver o sol nascer na rua, debaixo de gorros, cachecóis e luvas. Espalhámo-nos pelos caminhos e às oito e meia detectamo-la a atravessar a rua arrastando a trela vermelha enlameada. Corremos silenciosas. Esgueirara-se pelas grades de um portão. Havia que esperar... e têmo-la de volta!
Lágrimas e sorrisos. Ela tremia e ganiu durante uma hora seguida, até que sentiu as patinhas aquecidas por um banhinho quente e se viu em lugar seguro. Era de novo pêlo e osso, mas estava connosco.
Corremos a avisar E., que era quem nos tinha alertado do seu paradeiro e que estava a rezar por ela desde que se levantara (ela tinha perdido um cão quando tinha doze anos e nunca o esqueceu). Verteu profundas lágrimas e beijou-a enquanto nos contava que Lolita lhe tinha sido posta no seu caminho para que ela a achasse. Sucederam-se telefonemas de pessoas que se interessaram pela causa e que disponibilizaram ajuda. Era o dia em que a minha mãe fazia anos e podíamos almoçar em paz.
Lolita recuperou a alegria e aparenta uma saúde de ferro. Uma heroína que voltou a casa para ter não se sabe quantos anos de vida.
Seja quanto for o tempo que dure, terá sempre um sofá para dormir. Os mimos estão garantidos.
2 comentários:
chorar outra vez.zzzzzzzzzzzz
Adoro histórias com um final feliz!...
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